Marco Legal do Saneamento Básico, de 2020, prevê fim do descarte de lixo em locais inadequados até agosto deste ano. No entanto, ainda há mais de 3 mil depósitos de lixo a céu aberto no país

O descarte irregular de lixo pode alavancar problemas ambientais e causar danos à saúde da população que vive em locais onde não há coleta seletiva. Lixões, aterros controlados, valas, vazadouros e áreas similares são alguns dos exemplos de locais onde não há um tratamento adequado para os resíduos que são descartados na natureza.

Na avaliação de especialistas ouvidos pelo Correio, faltam incentivos necessários para impulsionar o descarte adequado e o aumento da reciclagem no país. Alta carga tributária e falta de suporte aos catadores são os temas mais recorrentes na visão de analistas, que acreditam que o Brasil deve percorrer um longo caminho para cumprir as metas estabelecidas no Marco do Saneamento e no Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), de 2022.

“Falta fechar os lixões. O Brasil deveria estar livre de todos os lixões ainda existentes até agosto de 2024, mas essa meta não será cumprida. Ainda convivemos com mais de 3 mil depósitos de lixo a céu aberto sem qualquer tratamento ambiental ou econômico”, observa o presidente da Abrema, Pedro Maranhão, que acredita que, com a substituição dos lixões por aterros sanitários, surgem diversas oportunidades de negócio no reaproveitamento de resíduos.

Tributação

Ele acrescenta que a questão tributária é outro problema grave. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a isenção de tributos na venda de materiais reciclados, o que, para o presidente da associação, torna os produtos reciclados mais caros que os similares recém-fabricados. “Defendemos a isenção tributária e autorização para a indústria a aproveitar crédito tributário ao adquirir material reciclado. Somente com medidas como essas poderemos ter esperança de atingir as metas estabelecidas no Planares”, avalia. A decisão da Suprema Corte foi alvo de recurso e a decisão final ainda não foi proferida.

Desigualdades

Apesar da expressiva quantidade de lixo, o levantamento indica que apenas 14,7% da população brasileira é atendida por coleta seletiva em casa. Essa realidade se torna ainda mais desigual quando a análise é feita por regiões. Enquanto no Sul e no Sudeste, a coleta atinge, respectivamente, 31,9% e 20,3% dos cidadãos, no Norte e no Nordeste, esse índice não passa de 2%.

Além das disparidades regionais, o especialista afirma que há outro problema que não é mensurado: a coleta de lixo nas áreas rurais. Na avaliação de Frota, isso pode ser considerado um problema crônico do país. “Esse distanciamento dos centros urbanos acaba sendo muito ruim, primeiro, porque a maioria das cidades não tem estrutura de pessoal e orçamentária. Além disso, tivemos uma mudança de governo. Então você acaba tendo que parar um pouco a máquina pública para conhecer aquela crítica pública que você entende ser estratégica, ou não”, sustenta.

Reciclagem

Com o descarte irregular em alta, um dos maiores desafios do Brasil é conseguir expandir a reciclagem de resíduos sólidos. O último Índice Nacional de Recuperação de Resíduos (IRR), de 2021, aponta que apenas 1,67% dos resíduos sólidos foram reutilizados, reciclados ou aproveitados energeticamente. Além disso, as projeções mais otimistas indicam que essa variável pode chegar a até 4%.

Mesmo no melhor cenário, o Brasil está longe de atingir a meta estabelecida no pelo Planares, que estabelece um IRR de 48,1% em 2040. Para o consultor de Sustentabilidade da BMJ Consultores Associados, Felipe Ramaldes, gargalos sociais e econômicos impostos pela realidade continental do país são alguns dos empecilhos para o aumento deste índice.

Além disso, o especialista avalia que, no aspecto econômico, o gasto para o país com limpeza urbana é muito alto. Dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) apontam que os gastos com limpeza urbana — desde a varrição de ruas até a coleta e o transporte — estão entre os cinco maiores gastos dos municípios no país.

De acordo com a associação, as prefeituras gastam, em média, R$ 124,44 por cidadão, por ano, com a limpeza urbana. “O reaproveitamento de materiais por meio da reciclagem apresenta um potencial interessante para o país por favorecer o reencontro da matéria-prima com a cadeia de produção e por contribuir para a redução da exploração agressiva de matérias-primas virgens, algo que desgasta cada vez mais o meio ambiente”, analisa Ramaldes.

Parceria entre SLU e catadores diminui os danos

Os serviços de limpeza urbana (SLU) foram criados no Brasil no século 19, com o objetivo de garantir a remoção dos acúmulos de lixo que eram gerados nos principais centros urbanos do país. Presente no Distrito Federal desde 1961, o SLUDF aumentou seus gastos com limpeza de R$ 28,2 milhões para R$ 42,5 milhões anuais, entre 2021 e 2022.

No DF, o serviço é um dos poucos a firmar contratos com catadores para a coleta seletiva e triagem do lixo nos aterros. Hoje, essas parcerias são estabelecidas com as cooperativas e associações de catadores da região. Segundo o chefe da Unidade de Sustentabilidade e Mobilização Social do SLUDF, Francisco Mendes, o serviço possui 42 contratos com esses grupos, atualmente.

“Nós fizemos o primeiro contrato com quatro cooperativas, abrangendo 5 RAs, em 2016. Em 2017, nós passamos a contratar para o serviço de triagem, até então a gente já vinha mandando toda coleta seletiva por empresas para organizações de catadores. Então em 2017 a gente começou a ampliar, 2018, 2019, e hoje nós estamos com 42 contratos”, explica Mendes.

A previsão orçamentária atual para o SLU é de R$ 18 milhões. Apesar disso, o chefe de sustentabilidade explica que esse número chega a, no máximo, R$ 3 milhões. Isso porque o sistema adotado pela autarquia nos contratos com os catadores estabelece o pagamento por produção, e não por um valor fixo.

Sobre a situação atual da coleta seletiva no DF, Francisco Mendes afirma que isso envolve uma série de desafios que não são tão simples de resolver. “Por exemplo, em Águas Claras tem 20% ou 30% da população que separa (o lixo) legal. Só que isso tudo vai para os mesmos contêineres. Então aquele resíduo que está bem separado vai ser contaminado por aquele que não está”, esclarece.

Incentivos

Na visão do chefe de sustentabilidade do SLU, há um grande desafio para o aumento da reciclagem no Brasil, que passa pela cultura da população. Apesar de não ser uma realidade que possa ser alterada da noite para o dia, ele afirma que já há melhorias e que poderiam ser alavancadas com incentivos da indústria para a logística reversa.

“Eu acho que isso passa pelo custo. Se a logística reversa fosse mais eficiente no nosso país, a gente teria um resultado muito mais rápido e abrangente. Porque o papel da logística reversa é assumir esse custo de colocar a embalagem no mercado e recolher essa embalagem de volta, assumindo todo esse custo. Faz parte do produto dela”, avalia.

A logística reversa é uma espécie de ciclo. Neste sistema, a indústria pode fabricar um produto já com a intenção de facilitar o retorno da embalagem para o estágio inicial, no qual são realizadas coletas e seleções para verificar se o produto pode, ou não, voltar a ser comercializado no mercado. É considerado um potencializador da reciclagem.

Na avaliação do presidente da Associação Nacional dos Aparistas de Papel (Anap), Marcelo Bellacosa, e do vice, João Paulo Sanfins, também faltam incentivos do governo federal para tornar a logística reversa mais atraente para o setor industrial. Em dezembro do ano passado, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva prometeu que levaria à frente uma lei para tornar obrigatória a logística reversa. Apesar disso, o setor reclama que não houve movimentos em direção a isso.

“Isso é muito crítico, porque faz com que a indústria tome ações como ela tomou. Ações que fazem com que ela pare de usar o reciclado, use somente a fibra virgem ou compre resíduos de outros países, como aconteceu na pandemia”, sustenta João Paulo. O setor de aparas de papel é um dos que sofre a maior desvalorização desde o início da pandemia. Segundo os aparistas, essa desvalorização chega a mais de 75%.

“Então o cara vai parar de fazer isso e vai fazer outra coisa. Aí quando o preço sobe de novo, ele já está fazendo outra coisa e não vai voltar, a não ser que você convença ele a voltar a pegar material reciclado. Então fica nessa montanha russa que sobe e desce depressa e que não tem uma regra”, lamenta o presidente da Apas, Marcelo Bellacosa.

Apesar da falta de incentivos do governo, o especialista em saneamento básico, Leandro Frota, avalia que não deve haver mudança em médio ou longo prazo sem a conscientização da população sobre o descarte seletivo.

“É claro que eles (governo) têm a obrigação constitucional, para a qual cada um que foi eleito. Mas a população tem a obrigação de cuidar do seu lixo”, reforça.

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