O desequilíbrio entre a alta demanda e oferta apertada de aparas marrons tem afetado grandes players da indústria, que observaram os custos quase dobrarem em 2024
A tendência da economia circular, conceito estratégico que se baseia na redução, reutilização, recuperação e, principalmente, reciclagem de materiais, tem ganhado cada vez mais força em diversos setores, especialmente na indústria papeleira. Nesse sentido, apesar do Brasil ser um dos principais recicladores de papel do mundo – com uma taxa de 85% para embalagens de papel, em 2022 –, o setor tem observado um cenário desafiador no que se refere ao uso da matéria-prima reciclada, as aparas.
Durante a pandemia de Covid-19, o setor papeleiro observou uma queda acentuada na coleta de aparas marrons em razão do isolamento social e fechamento do comércio. Na época, a escassez de material pós-consumo desencadeou um aumento nos preços das aparas, afetando o mercado de embalagens. Contudo, conforme a Associação Nacional dos Aparistas de Papel (ANAP), a situação se inverteu com a retomada da economia. No início deste ano, os preços comercializados eram similares aos dos primeiros meses de 2017, porém, ao longo dos últimos meses, este valor quase dobrou.
Segundo João Paulo Sanfins, vice-presidente da ANAP e sócio-diretor do Grupo CRB (Comércio de Resíduos Bandeirantes), após a pandemia os baixos preços exercidos desestimularam a coleta do material (por catadores e toda a cadeia).
“Nesse momento vivemos um cenário em que as fábricas estão demandando uma grande quantidade de aparas, mas esse material não está disponível no mercado”, explicou o executivo, em entrevista exclusiva ao Portal Packaging.
Dessa forma, os preços para adquirir as aparas está em um “rally de subida”, conforme Sanfins, diante do desequilíbrio entre a oferta e demanda. Para ele, os aparistas estão passando esses aumentos de forma até precipitada às vezes, para motivar a cadeia de reciclagem a coletar mais papel/papelão.
Em julho, as aparas marrons sofreram novos reajustes, ultrapassando os mil reais – ondulado I e ondulado II foram comercializados por, em média, R$ 1.139,12 e R$ 1.025,64 a tonelada fob depósito. O preço exercido representa um aumento de 15,5% e 17,7% em comparação ao mês de junho e de 67,2% e 78,6% na comparação anual, respectivamente, de acordo com dados da Anguti Estatística.
Nesse contexto, grandes players do setor de packaging são pressionados com a elevação de custos para sua operação, como a Smurfit WestRock, novo gigante global resultante da aquisição da WestRock pela Smurfit Kappa, e a Irani, uma das principais indústrias de papel e embalagens sustentáveis do Brasil, conforme indicam Manuel Alcalá, CEO da Smurfit Westrock no Brasil, e Sérgio Ribas, CEO da Irani, em entrevista exclusiva ao Portal Packaging.
USO DE MATÉRIA-PRIMA RECICLADA NA OPERAÇÃO
Embora a busca por matéria-prima reciclada esteja crescente, a fibra virgem (celulose) ainda possui forte presença no mercado, principalmente por possuir características específicas para produtos expostos a alta umidade, como nos segmentos de frutas e proteínas, grandes impulsionadores da expedição de papelão ondulado no país.
Na Smurfit WestRock, a divisão entre os uso dos dois tipos de fibras varia conforme a necessidade de cada cliente. “Valorizamos os diversos tipos de fibras, avaliando tecnicamente o melhor material para cada necessidade dos nossos clientes. A fibra reciclada pode ser utilizada na maior parte das soluções e conseguimos medir por meio das nossas ferramentas de inovação a resistência para proteger os produtos”, explicou Manuel Alcalá. “Nossa estratégia é valorizar a sustentabilidade do material, afinal somos a economia circular em ação, proporcionando a retirada de milhares de toneladas de papelão do meio ambiente para retomar ao mercado”, acrescentou.
Já a Irani, segundo Sérgio Ribas, alinha sua operação com 70% de fibras recicladas e 30% de fibra virgem, conforme os mercados que atende, considerando também o tamanho de sua base florestal para uma produção integrada.
Para adquirir a matéria-prima reciclada, as empresas contam com a parceria de aparistas, cooperativas, indústrias e varejistas nas regiões em que atuam, colaborando para uma logística mais otimizada. No caso da Smurfit WestRock, alguns clientes ainda realizam iniciativas de logística reversa, colaborando para o retorno da embalagem ao processo produtivo. No entanto, o desequilíbrio entre a alta demanda por aparas e a oferta apertada eleva os preços.
Na visão de João Paulo Sanfins, a maior dificuldade do setor é a falta de incentivo da coleta do material para a reciclagem, o que seria estimulado por uma maior estabilidade nos preços de compra, como já funciona com outras commodities de reciclagem – como no caso do alumínio – em que o catador sabe que o valor vai sempre estar acima de um certo mínimo que permite previsibilidade. “É necessário a busca por estabilidade de demanda, oferta e preço”, declarou.
IMPORTAÇÃO DE APARAS TENTA FREAR ASCENSÃO DOS PREÇOS
Enquanto esse cenário permanece desafiador, algumas empresas podem optar pela importação de aparas do mercado externo. Conforme explica Ribas, normalmente o mercado interno é suficiente para atender as necessidades do setor, e quando ocorre a importação, o percentual tende a ser baixo. Para Alcalá, a alternativa é viável quando necessário para garantir o suprimento adequado para seus clientes, mesmo com valor mais elevado.
De acordo com a ANAP, recentemente foram importadas 45 mil toneladas de papelão, principalmente dos EUA, a um preço 30% superior ao oferecido no mercado interno, como forma de evitar aumentos no valor da matéria-prima obtida no Brasil.
Essa movimentação sinaliza que o setor já tem absorvido custos adicionais há algum tempo. “As aparas representam cerca de 50% do custo do papel, assim o impacto é extremamente forte para a indústria, que precisa se rentabilizar para continuar investindo na atualização do seu parque fabril com o objetivo de permanecer desenvolvendo suas operações tecnologicamente”, enfatizou o CEO da multinacional.
Nesse sentido, como setor que fornece embalagens para outras organizações de diversos segmentos, o repasse de custos do mercado de packaging pode reverberar em outros. “As empresas vão buscar reposição dessa elevação de custos, gerando aumento de preços nos seus produtos”, sinalizou o CEO da Irani, referente à indústria de embalagens.
Em 2022, de acordo com dados da ANAP, no mercado brasileiro foram mais de 7,44 milhões de toneladas de consumo aparente de papel reciclável e 4,85 milhões de toneladas de papéis coletados, resultando em uma taxa de 65,2% de coleta e somando um faturamento de R$ 4,3 bilhões.
IMPACTO NAS COOPERATIVAS E INCENTIVOS GOVERNAMENTAIS
O aumento de custos não tem prejudicado apenas a indústria de papel e embalagens, como também as cooperativas. O vice-presidente da ANAP reforçou que, nos últimos cinco anos, a inflação dos custos operacionais teve grande impacto no setor, com margens de lucro cada vez menores.
“O valor do material sendo alto ou baixo, aquele resíduo continua sendo gerado mensalmente. Existe toda uma rede de fornecimento e coleta que vive da comercialização desse material, e quando o valor está muito baixo essa rede é desestimulada e desestruturada. Se uma cooperativa vende 100 toneladas de papelão em um mês por R$ 1 o kg, poucos meses depois, está vendendo a mesma quantidade por R$ 0,50 o kg – é metade do faturamento, metade da renda, mas o custo se mantém, e com isso a cooperativa não tem condição de remunerar a mesma quantidade de cooperados de forma justa”, elucidou João Paulo. “Além dos nossos custos operacionais, temos uma obrigação social com a cadeia da reciclagem, são milhares de famílias que vivem da coleta”, completou.
O executivo ainda ressalta os desafios tributários que o segmento de recicladores enfrenta: “O setor vive o desafio da ‘bitributação’ das aparas, papéis e embalagens produzidos a partir delas, quando se fala de ICMS, PIS, Cofins e IPI”.
Recentemente, o Governo Federal realizou uma ação conjunta da Fazenda com o Ministério do Meio Ambiente, como iniciativa do Plano de Transformação Ecológica para fortalecer e estruturar o setor. O conjunto de ações totalizam R$ 425,5 milhões, sendo R$ 300 milhões em incentivos tributários, via Lei de Incentivo à Reciclagem (LIR), chamada “Lei Rouanet da reciclagem”, com objetivo de aumentar os investimentos no setor. A LIR criou também o Fundo de Apoio para Ações Voltadas à Reciclagem (Favorecicle) e os Fundos de Investimentos para Projetos de Reciclagem (ProRecicle).
Conforme Sanfins, apesar de ser uma iniciativa favorável para os recicladores, ainda é necessário observar a normalização formal de como o recurso pode ser utilizado. “É importante ressaltar que o valor disponibilizado vai surtir maior efeito se aplicado aos recicladores, que ao possuírem maior demanda por material, vão inflacionar o preço das aparas, dessa forma o catador que está lá na ponta vai sofrer maior impacto com aumento da sua renda. Esperamos que o recurso seja destinado a soluções de longo prazo, que buscam resolver o problema do setor”, avaliou.
“Devemos incentivar políticas públicas de reciclagem para aumentar a coleta do material em todas as regiões do país para que a cadeia fique mais estável e as indústrias possam seguir se desenvolvendo e apoiando o crescimento econômico das comunidades onde atuam”, considerou o CEO da Smurfit WestRock.
CENÁRIO PARA O CURTO PRAZO
Sérgio Ribas relembra ainda que o segundo semestre tem uma sazonalidade mais alta de papéis. No caso da Irani, há uma autossuficiência na produção de papéis, contudo, o setor pode observar uma demanda ainda mais alta por matéria-prima, como a necessidade de aparas está diretamente ligada ao crescimento do mercado de embalagens em geral.
Tendo em vista essa relação, João Paulo Sanfins destaca a importância da indústria para promover a economia circular: “Aparas são resíduos das próprias embalagens produzidas pela indústria papeleira. É necessário olhar a reciclagem não somente como redução de custo, mas como um compromisso ambiental de responsabilidade estendida do produtor”.
“Outra forma de ajudar é se unindo à ANAP na luta por benefícios para a reciclagem junto ao governo. Fazer com que o ato de usar matéria-prima reciclada traga benefícios tributários para o reciclador e para o consumidor”, completou.
Para Manuel Alcalá, mesmo diante deste cenário desafiador, a Smurfit WestRock ainda enxerga oportunidades no Brasil: “Continuaremos investindo no país de maneira estratégica e unindo os dois tipos de fibra para atender as necessidades dos nossos clientes, sempre buscando a melhor solução”.
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